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E agora? Em defesa da Universidade Pública

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Foto: Marcos Oliveira

Este artigo é uma tentativa de defesa da universidade pública, gratuita, laica e de qualidade. Ao afirmar isso, é importante até localizar a expressão em termos históricos. Embora cada adjetivo acima tenha uma história que pode ser remetida aos próprios primórdios da educação institucionalizada, dois momentos históricos necessitam ser localizados como base da conhecida expressão. Primeiro, o grande movimento do maio de 1968, nascente entre os universitários franceses que rapidamente ganhou o mundo. E também, no caso brasileiro, a expressão foi tomada como bandeira de luta do Fórum Nacional de Defesa da Escola Pública, mais do que um espaço que reuniu instituições das mais diferentes matrizes, também era em si um movimento. Assim, ao defender uma universidade pública, gratuita, laica e de qualidade, remeto-me basilarmente a movimentos de contestação e, principalmente, de resistência, ancorados historicamente e amalgamados intransigentemente em uma práxis que, em última instância, objetiva uma sociedade melhor para todos.

Como a proposta de desenvolvimento do texto é percorrer todas as palavras já citadas, antes dos adjetivos, comecemos com o substantivo, ou seja, a defesa. Inicialmente, a onda de intervenções judiciárias e policiais nas universidades merecem destaque. Ainda que a decisão liminar de Carmem Lucia, referendada pelo Supremo Tribunal Federal do país ampare a autonomia das universidades e lembre a juízes e às forças policiais que qualquer escolha sem manifestação de exposição de ideais é simulacro, é ditadura, é preciso defender a universidade de tais intervenções. Nunca, como nesses dois últimos anos, tais instituições sofreram tanto com interferências dessa ordem, prisões, conduções coercitivas, intimidações, enfim um conjunto de ações que, em última instância, questiona a própria existência da universidade em seu fundamento essencial, a autonomia. Outro sinal significativo é a extinção de secretarias que estão ligadas às universidades nos estados, como a secretaria de ciência e tecnologia do Estado do Paraná. E não somente em seu formato, a universidade precisa ser defendida também em sua existência. Não são poucas as vozes que afirmam que frente à crise nacional, em especial no ramo educacional, a prioridade (pode-se ler exclusividade) deve ser dada à educação básica. Em relação à formação superior, muito se tem apontado, como a extinção dos cursos de humanas, a formação técnica no ensino médio, a criação de instituições de pesquisas aplicadas, ou seja, uma formação operacional, o que se distingue e ameaça a universidade em sua concepção e existência.

Universidade implica em universalidade e isso tem significados tão plurais quanto o próprio conceito. É justamente em função da universalidade que não se pode admitir proposições como a da “escola sem partido”, pois a universidade é o espaço do contraditório e do pensamento crítico e qualquer raciocínio crítico percebe que o conhecimento, a ciência e a tecnologia, a inovação não são neutras, e qualquer tentativa de imposição de neutralidade contém um “lado” definido, o que se intensifica em um espaço plural. É preciso que, no ambiente universitário, haja manifestações, posicionamentos, reconhecimento das diferenças e, sobretudo, diálogo entre os contrários. E isso é necessário não somente no campo ideológico e político, mas também trata-se da necessidade de pluralidade: da necessidade de diversas classes, o que impõe à universidade a busca de estratégias para inclusão das camadas populares em seu meio. Esse é um grande desafio, pois, em uma sociedade na qual a desigualdade impera, essa discrepância tende a se reproduzir e até se intensificar no interior das universidades. Para ser universal, esse espaço necessita da democracia, da liberdade em todas as suas acepções e, sobretudo, de políticas de inclusão das minorias e um olhar especial à maioria alijada socialmente.

Uma das formas de materialização da universalidade é justamente o caráter público de nossas universidades. É um formato que dialoga com o ordenamento jurídico cidadão expresso na constituição vigente, da educação como direito universal. Enquanto entidade pública, além de ampliar o direito ao cidadão, a universidade atua estrategicamente em favor dos interesses coletivos e do desenvolvimento social do país. Há que se preservar a constituição e o papel que a universidade brasileira tem no desenvolvimento da ciência e tecnologia nacional. Com exemplos concretos, pode-se evidenciar a preponderância do espaço universitário: onde se localiza a matriz de produção das próteses neurais, os chamados exoesqueletos, para a reabilitação da paralisia corporal, do grande cientista brasileiro Miguel Nicolelis? E a matriz tecnológica da produção aeronáutica da Embraer, referência mundial? Ou de onde vêm os cientistas brasileiros que integram o projeto Genoma Humano? E não só na ciência, a produção de energia hidrelétrica brasileira, produtividade agropecuária, arquitetura e áreas de serviços, enfim, a produção nacional. E ainda mais, em uma universidade pública, setores como formações voltadas para o próprio serviço público, como é o caso da formação de professoras e professores em diversos níveis, ou para a produção no setor artístico, são solidamente atendidos, ao contrário da lógica imperante em outros setores, como o mercado – veja o caso japonês de extinção do ensino na área de humanas. Em território nacional, pode-se perceber o alcance da produção científica das universidades públicas no relatório “Research in Brazil” realizado pela estadunidense Clarivate Analytics – ligada à multinacional Thomson Reuters e divulgado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES – cujo conteúdo fora veiculado pelo sindicato nacional dos docentes do Ensino Superior – ANDES – com o seguinte título: “Só instituições públicas fazem pesquisa no Brasil (…)”. Assim é perceptível o alcance do caráter público da universidade brasileira.

O formato mais democrático da universidade pública é dado por sua gratuidade. O caso da universidade pública e gratuita no Brasil não é comum. Os modelos estadunidense e europeu em sua maioria são estatais e pagos. Porém é a gratuidade que garante possibilidades de acesso de um contingente populacional desprovido de qualquer outra possibilidade. Sobre a experiência dos países citados, há uma diferente significativa da tessitura social e, principalmente, no formato de produção da ciência e tecnologia, que é bem maior fora das universidades. E, ainda assim, há exemplos, como a Alemanha, que reverteram o modelo e aderiram à gratuidade. Por aqui, é preciso ainda enfatizar a tradição operacional das instituições privadas. Além de estarem distante do processo de produção de ciência e tecnologia, via de regra, o sistema privado é substancialmente inferior no que tange à qualidade que há no sistema público. Isso é evidenciado nos diversos mecanismos de avaliações, das mais diferentes matrizes e assim se criaram instituições bastante definidas, na qual a universidade pública é responsável pelo desenvolvimento social e pelo avanço da ciência e tecnologia do país, ou seja, por toda estrutura que necessita de investimentos mais significativos, tanto que o sistema stricto sensu, mestrados e doutorados, estão majoritariamente nas universidades públicas. Os argumentos mais comuns dos defensores do fim da gratuidade no ensino superior brasileiro alegam que o sistema é injusto e inverte a lógica da educação básica, incluindo justamente aqueles que têm mais oportunidades de formação inicial. Esse é um argumento parcial e que não retrata o conjunto do ensino superior brasileiro. A maioria dos estudantes, pode-se citar os de licenciatura, por exemplo, estão ligados umbilicalmente à escola pública. E a proposição de cobrança seletiva, aos que “puderem” pagar é o cavalo de Tróia para a cobrança plena, o que alijaria, novamente, os pobres da universidade, uma vez que qualquer cobrança impactará na permanência de milhares de estudantes de origem popular.

Outra questão, em tempos tão inflamados em torno de um discurso religioso, é a necessidade da laicidade da instituição universitária. Inicialmente é importante destacar que uma universidade laica não é uma universidade avessa a religião ou a religiosidade. A laicidade é central justamente para a promoção e segurança da liberdade de expressão da diversidade teológica contida em um país multicultural como o Brasil. Todos os credos, bem como todas as culturas necessitam ter espaço e igualdade no interior de um espaço plural como o universitário. Mais um debate que geralmente é deslocado quando se discute a laicidade da universidade é a polêmica entre ciência e religião. Inicialmente, é necessário ressaltar que embora polêmica, essa união não é uma premissa inquestionável. Há, por dentro de diversas atividades ligadas a religião, avanços em determinados campos da ciência; o verdadeiro debate que se deve travar é entre o dogma e a ciência. Justamente porque o avanço científico e tecnológico é uma espiral dialética de avanços conquistados por meio de negação de fatos, tecnologias ou premissas anteriormente lançadas, porque a dinamicidade da ciência não pode ser arrefecida pela inquestionabilidade do dogma. O caráter inexorável e o fundamentalismo do dogma e de qualquer religião, que se coloca acima, principalmente do outro, por ser diferente, não cabe em um ambiente universal e, ainda, em algumas situações, pode até ser um entrave para o desenvolvimento social promovido pela ciência.

É justamente essa superação ao formato estático, à base investigativa, à inquietude acadêmica e tecnológica que faz da universidade pública brasileira sinônima de qualidade. Qualidade que é expressa em qualquer ranking (e veja que, por princípio, acho tais avaliações de larga escala equivocadas), seja ele nacional ou internacional, quantitativo ou qualitativo, enfim, principalmente em relação aos demais sistemas universitários, o sistema público é incontestavelmente superior. O aporte estatal, o investimento, ainda que cada vez mais escasso em pesquisa, ciência e tecnologia, que se faz, essencialmente, com a valorização dos profissionais da área, em suas formações diversas e seu contínuo trabalho de ensino, pesquisa e extensão, define, por vezes, a excelência, que é padrão de qualidade para toda área. A ordem de exposição dessas categorias não é aleatória: qualidade para a defesa da universidade pública é um dos alicerces para o debate atual, ainda que articulado aos demais, é finalidade; um sistema sem apoio estatal, financiado com as regras do mercado ou instituições religiosas com abordagens dogmáticas, culmina, impreterivelmente com o decréscimo de qualidade.

Mas por que a exposição dessas categorias para realizar a defesa da universidade pública? Inicialmente, porque o formato da universidade aqui descrito é inegociável. Não há ataques diretamente à existência da universidade, mas sim, há ataques a suas formas públicas, em sua gratuidade, em seu conteúdo. Por isso, reafirmar faz parte da defesa. E por que agora? Vivenciamos um momento muito grave na história brasileira e não é somente de crise de valores largamente debatida superficialmente por milhões de brasileiros, mas uma crise do sistema e, assim, as instituições públicas são questionadas, principalmente pelo mercado. Hoje, a universidade é uma das mais questionadas, seja em seu conteúdo e disputas políticas e ideológicas, seja em sua manutenção de caráter público. Essa instituição tem se mostrado secularmente uma das mais estáveis e necessárias para um projeto estratégico de sociedade. Não permitamos que uma onda (assim espero) ponha por terra essa instituição que, embora secular, ainda muito pode contribuir para o projeto de nação.

*Fernando José Martins é professor e diretor-geral da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – Unioeste – Campus de Foz do Iguaçu. Pedagogo, mestre e doutor em Educação.

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