Desde os anos 1960, a intensa atividade comercial na Região Trinacional atraiu uma significativa população de origem árabe — majoritariamente palestinos, libaneses, sírios e egípcios. Foz do Iguaçu, por exemplo, concentra hoje a segunda maior comunidade de língua árabe do Brasil, ficando atrás apenas de São Paulo. A maioria segue o islamismo, tanto na vertente sunita quanto xiita.
Em Ciudad del Este, no Paraguai, vivem aproximadamente 9 mil muçulmanos, com predominância xiita. Já Puerto Iguazú, na Argentina, não abriga uma comunidade árabe expressiva.
Apesar de não haver confirmação oficial, a região passou a figurar no radar da segurança internacional a partir de 1992 e 1994, quando ocorreram os atentados terroristas contra a embaixada de Israel e a Associação Mutual Israelita Argentina (AMIA), em Buenos Aires. As investigações apontaram que os ataques podem ter sido planejados a partir da Tríplice Fronteira. O Hezbollah, a Organização Jihad Islâmica e o regime iraniano foram responsabilizados pelas ações, que deixaram mais de 100 mortos e centenas de feridos.
Em 1998, dois homens foram presos no Paraguai suspeitos de fazer reconhecimento das embaixadas dos EUA e de Israel para possíveis atentados, a suspeita jamais foi confirmada. Já em 2018, o Brasil deteve um financiador do Hezbollah, que foi extraditado ao Paraguai e processado em 2020. Mesmo sem apresentar provas públicas, entre 2009 e 2012 os EUA incluíram oficialmente a “Tríplice Fronteira” em sua lista de “santuários de terrorismo” no relatório Country Reports on Terrorism.
Em 2003, a revista Veja publicou uma reportagem afirmando, com base em supostas fontes da Abin (que não tiveram a identidade revelada), que Osama bin Laden teria visitado Foz do Iguaçu em 1995 e feito uma palestra em uma mesquita local. Até hoje, nenhuma evidência concreta foi apresentada. Mesmo assim, os EUA mantêm a região sob vigilância constante.
Fronteira novamente na mira dos EUA

O governo dos Estados Unidos anunciou nesta semana, no site de sua Embaixada, por meio do programa Rewards for Justice (RFJ), uma recompensa de até US$ 10 milhões por informações que levem à interrupção dos mecanismos financeiros do grupo Hezbollah no que eles chamam de região da Tríplice Fronteira, e nós de Região Trinacional — onde se encontram Brasil, Argentina e Paraguai.
O programa, vinculado ao Departamento de Estado e gerido pelo Serviço de Segurança Diplomática norte-americano, solicita dados que ajudem a identificar supostas redes financeiras da organização no território trinacional. Segundo as autoridades dos EUA, o Hezbollah se vale de atividades ilícitas para arrecadar recursos na região, como lavagem de dinheiro, tráfico de drogas, contrabando de carvão, petróleo e diamantes, além de comércio ilegal de produtos de luxo e falsificação de dólares e documentos.
Outras fontes de financiamento incluem atividades empresariais em toda a América Latina, abrangendo os setores de construção civil, comércio exterior e venda de imóveis.
Alvo da recompensa
O Departamento de Estado informou que a recompensa será paga a quem fornecer dados que levem à identificação e desarticulação de:
- Fontes de receita e canais de financiamento do Hezbollah;
- Doadores e facilitadores financeiros da organização;
- Instituições financeiras ou casas de câmbio que processem transações do grupo;
- Empresas e investimentos ligados ao Hezbollah;
- Empresas de fachada envolvidas na aquisição internacional de tecnologia de uso dual;
- Esquemas criminosos que beneficiem financeiramente a organização.
O contexto por trás do anúncio
Embora a ofensiva dos EUA tenha como foco declarado o combate ao terrorismo internacional, a movimentação ocorre num momento de tensão diplomática. Neste mês de maio, membros do governo Donald Trump pressionaram o Ministério da Justiça brasileiro a reconhecer facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) como organizações terroristas — o que foi negado pelo Brasil com base na legislação vigente.
A Lei Antiterrorismo brasileira exige motivações ideológicas, religiosas ou por ódio para classificar um grupo como terrorista. Facções como PCC e CV, voltadas exclusivamente ao lucro, não se enquadram nessa definição. Para especialistas e juristas, consultados por diversos meios de comunicação durante esta semana, cujo as opiniões foram amplamente divulgadas em diversas matérias, ceder à pressão americana poderia abrir brechas para interferência externa indesejada.
O histórico de pretextos
A atuação norte-americana contra grupos ditos terroristas levanta alertas. Em 2001, após os atentados de 11 de setembro, os EUA invadiram o Afeganistão com o argumento de combater a Al-Qaeda. O conflito se estendeu por duas décadas, deixou milhões de mortos e terminou com a retomada do poder pelo Talibã, sem cumprir seus objetivos declarados.

Também não podemos esquecer das supostas “armas de destruição em massa”, que motivaram a invasão do Iraque pelas tropas americanas, e que jamais foram encontradas.
Casos semelhantes ocorreram na América Latina. No Chile, a suspeita de um plano terrorista — jamais comprovada — resultou no golpe que derrubou Salvador Allende e instaurou a ditadura de Augusto Pinochet, com apoio da CIA. Em El Salvador, o enquadramento de gangues como organizações terroristas levou à prisão em massa de inocentes, muitos sem julgamento.
A disputa geopolítica por trás da recompensa

A ofensiva contra o suposto financiamento do Hezbollah na região trinacional levanta suspeitas sobre intenções econômicas mais amplas dos Estados Unidos. A região, apelidada de “Miami Brasileira” pelo intenso fluxo comercial, tornou-se uma ameaça estratégica à economia americana, especialmente no contexto da guerra tarifária com a China.
Com o Paraguai servindo como ponto de entrada para produtos chineses — que depois circulam por países da América do Sul e América Latina além do Corredor Bioceânico, obra de infraestrutura financiada pelos chineses que vai cruzar o Brasil e o Paraguai ligando o Oceano Atlântico ao Oceano Pacífico —, os EUA enfrentam a possibilidade de perder influência sobre rotas comerciais importantes. Ao mirar o Hezbollah, Washington pode estar, na prática, tentando enfraquecer esse eixo de comércio paralelo.
Endurecer o combate ao crime organizado é necessário, ceder aos interesses alheios, jamais…
O combate ao terrorismo e ao crime transnacional é essencial, e pra isso, o Brasil conta com uma das melhores polícias do mundo — que inclusive, chegou a ministrar cursos nos EUA — e que jamais detectou um indício real da operação de um braço financeiro de uma organização terrorista na região. Obviamente, o Brasil não deve fechar seus olhos ou reduzir sua vigília na região, mas é igualmente necessário preservar a soberania nacional e o respeito às leis internas.
A decisão dos Estados Unidos de oferecer uma recompensa milionária por informações sobre o Hezbollah na Tríplice Fronteira não é apenas um ato de vigilância internacional. É, sobretudo, um gesto de desrespeito profundo à história e à identidade das cidades que formam essa região trinacional.
Foz do Iguaçu, Ciudad del Este e Puerto Iguazú construíram ao longo das décadas uma trajetória marcada por convivência pacífica, diversidade cultural e esforço coletivo para se tornarem referência no turismo nacional e internacional. O setor de turismo, que emprega milhares de pessoas e movimenta economias locais, não pode ser alvo colateral de narrativas que — até aqui — carecem de provas consistentes.
Apontar o dedo contra uma das maiores comunidades libanesas do Brasil, insinuando vínculos terroristas de forma genérica, é um golpe injusto contra uma população que trabalha, empreende e vive em paz. É, também, um risco reputacional grave para a imagem internacional da região, que há anos busca se consolidar como destino seguro, acolhedor e vibrante.
Quando um governo estrangeiro lança suspeitas infundadas com ampla repercussão, mas sem base concreta, o que está em jogo não é apenas a segurança internacional — é a soberania local e a dignidade de milhares de famílias. É preciso resistir à tentação de aceitar como inquestionável toda iniciativa envolta no discurso do combate ao terrorismo. Às vezes, o que se disfarça de zelo global esconde apenas interesses econômicos, estratégicos e geopolíticos.
O Brasil deve investir em estratégias eficazes e autônomas para combater suas facções criminosas, sem ceder à rotulagem externa que pode servir a interesses geopolíticos alheios. Em um cenário global cada vez mais tensionado, proteger a legislação e os interesses nacionais é, também, uma forma de proteger vidas, principalmente quando o país que pressiona, já provou inúmeras vezes, que não se importa muito com as que não residem em seu território.
Kaká Souza é colunista do Portal Click Foz do Iguaçu, escritor, roteirista e autor do livro "Compras no Paraguai - O Guia Definitivo".